Imagine um bom velhinho que, há muito tempo, pertencia à igreja turca e costumava ajudar as pessoas. Ele era um bispo, depois que morreu tornou-se santo, o São Nicolau, e, na Alemanha, sua imagem foi associada ao Natal. Há quem acredite que ele ainda vive e é mantido, pelos comerciantes, em regime de cárcere privado no Pólo Norte, produzindo brinquedos durante o ano todo e saindo de lá só em dezembro para entregá-los às crianças que não vivem na miséria. Uma outra versão é a que ele ajudava uma pessoa aqui e outra ali enquanto perambulava pelas noites usando uma roupa marrom, até que um dia a sua imagem foi parar na prancheta de um ilustrador sueco, que trabalhava numa empresa estadunidense. Nesse dia, o bom velhinho teve a cor da sua roupa alterada para vermelha. Com o novo visual, passou a fazer campanha publicitária divulgando certo refrigerante preto.
Pois bem, você estava achando que essa historinha ia se desenrolar longe do Brasil, não é? Não é por aí, infelizmente ela já se desdobrou por todo o mundo e aqui em Ilhéus não poderia ser diferente. O tal São Nicolau está cada vez mais presente. A grandeza das decorações natalinas cresce a cada ano e a identidade da cidade e de seus habitantes se desvanecem paulatinamente. O bispo turco, que se tornou santo, que foi associado ao Natal na Alemanha e que se tornou padroeiro da Rússia, teve sua imagem modificada por um sueco para ser utilizada por uma empresa estadunidense. Além disso, o Papai Noel ajudou a difundir uma árvore com forma cônica, típica das florestas européias, enfeitada com penduricalhos alemães e húngaros. Essa mistura toda, ao lado da neve sintética que podemos encontrar em alguns telhados ilheenses, passou a compor a decoração de várias moradias, nas quais se fala português e se comemora o nascimento de um símbolo cristão numa terra cheia de saravás e axés.
E você me pergunta: As pessoas são livres para fazerem isso? Sim, são, e essa mistura é cada vez mais comum no mundo todo, entretanto, ela está enraizada em graves problemas socioculturais, como a crise de identidade e a passividade diante de certas imposições culturais estrangeiras. A liberdade é boa, mas para não se tornar perigosa deve sempre andar ao lado da razão. Aos laicos, ateus, agnósticos, prosélitos e não-cristãos só resta protestar contra esse crescente tipo de imposição cultural. Podemos fazer isso enriquecendo esse balaio-de-gatos com a tradição local, inovando com adaptações esse costume já tão enraizado pelos cristãos.
Precisamos pensar um pouquinho mais em nossas raízes para impedirmos a possibilidade de anulação dos nossos costumes, nos manifestar de alguma maneira e preservar um espaço verdadeiramente democrático e laico diante de tanta pregação eclesiástica e da mercantilização do calendário gregoriano. Se o mundo está de portas abertas para toda essa anomia sociocultural, vamos nos apegar um pouco mais às questões regionais para propor alternativas e promover a divulgação de idéias fora do eixo consumista e banalizador de valores. Uma data como essa ajuda a despertar o lado humanitário de cada cidadão, no entanto, não necessitamos de um dia específico para praticarmos a solidariedade e a tolerância, nem mesmo para presentearmos um amigo ou parente. Não podemos dar espaço ao desnatal nos outros dias do ano e nem perder nossa identidade.
Que tal um Papai Noel em traje de Pai-de-santo? Que tal uma Mamãe Noel? Que tal pendurarmos os cartões recebidos dos amigos em um cacaueiro?